domingo, 24 de fevereiro de 2008

A novidade cá da terra

A última novidade aqui da terra é o relógio que decidiram colocar na nova capela! Agora de meia em meia hora, de dia e de noite, lá estão duas ou três cornetas a postos para nos lembrar que horas são!

Com esta novidade lembrei-me de uma polémica de há uns anos na vizinha aldeia de Quintela de Azurara, que teve direito a destaques televisivos e a uma crónica de José Cardoso Pires:

Por Quem Os Sinos Dobram
Às 6h30 da manhã Deus estava de costas para mim e eu escrevia. Alvalade a esta hora é uma paz sagrada porque ainda não há comércio e os ladrões estão todos no primeiro sono. Lá mais para tarde, não: os três bancos aqui do largo abrem as portas, o comércio, mais ou menos estremunhado, começa logo a facturar e os gatunos de esticão ocupam os seus postos de vigia, à espera das velhinhas distraídas, das meninas de fio de ouro que vão a caminho da escola e do mais que lhes passar à mão. 7h30 da manhã. Tudo na mesma por enquanto. Deus continua de costas, que eu bem o sinto enquanto escrevo. É o costume, e eu já nem me ofendo. Deus só se interessa pela literatura dos Testamentos e pela poesia com "imprimatur" - a dos hinos, especialmente, e aquela que fala das virgens e dos milagres. Mas de repente vem o Diabo e desata a tocar os sinos da igreja aqui ao lado, para me estragar a escrita. Pronto, estou arrumado. Sempre que o diabo começa a badalar os sinos de Deus ponho ponto final em mim e fecho parágrafo porque sei que ele está feito com os críticos literários rancorosos e com os académicos de gramática dourada. A partir de agora já sei que durante o resto do dia vou ter, a espaços certos, impiedosos, os sinos a dar horas em avé-marias, como se cá no bairro ninguém tivesse relógio. Esta música de badalo excita a população local. Os cheques sem cobertura começam a esvoaçar pelos balcões das agências bancárias, os gatunos de esticão atiram-se às bolsas do passante com alegria veloz e os cartões do multibanco desaparecem à ponta da navalha, transformados em dinheiro de morte ou vida. Meio-dia em ponto. Ao bater do último sinal, recordo William Carlos Williams naquele poema em que ele diz: "Sem ser católico ouço os sinos". Eu também. Mas duvido que, lá na cidadezinha de New Jersey onde ele viveu, os dias fossem um repicar cronometrado como aqui, com chamadas pelo meio para as novenas, missas da regra e outras liturgias. Não, da paz campestre é que eu preciso. Cantar de abelhas, cheiro a pinheiros, ar puro e, vá lá, uma campana a tocar de longe em longe, como se fosse o cordeiro de Deus de passagem pelo mundo. Mas paz campestre onde? Um dia destes abro o telejornal e vejo que em Quintela de Azurara, para os lados de Mangualde, o povo anda em polvorosa, não só atordoado com os sinos como com as mensagens electrónicas que a igreja do lugar lança cá para fora aos quatro ventos. De manhã à noite, parece que aquilo por lá é um desfiar permanente de missas, recitações, ladainhas e oratórias, espalhadas por montes e vales por uns altifalantes desvairados que o padre da freguesia mandou instalar na torre do templo de Deus. Como no mundo islâmico, afinal; os camponeses de Quintela é que ainda não deram por isso. Crentes na Santa Madre Igreja, o que eles não são é fundamentalistas como o padre e, assim, protestam abertamente contra os sinos da discórdia e contra a poluição sagrada que lhes baralha o dia-a-dia. Alguns talvez até já tenham ensurdecido, quem sabe?, e estejam privados de ouvir a voz do Senhor. Outros, com tanta balbúrdia, já confessam diante das câmaras da televisão que receiam perder a fé. Perder a fé? O padre Arlindo Tavares, que é quem comanda esta cruzada electrónico-campestre, aparece então no ecrã em paramentos de seda e ouro, para se justificar ao mundo dos espectadores. Não se mostra pessimista nem inquieto com a contestação popular. Não fala nisso, sequer. Olhar pio e magoado, recita umas coisas breves com voz ungida de padre antigo a cheirar a mofo e, tudo somado, conclui-se que "trabalha para salvar o povo". E "dixit". Por sua vez, o entrevistador também se apressou a fechar a reportagem, antes que os sinos recomeçassem a tocar, calculo eu. Sei lá. Eu, pelo menos, mesmo sem os ouvir, fiquei a senti-los num cadenciar lento e igual. Um dobrar a finados, digamos. Agora, quando eles soam na igreja aqui ao lado e cobrem a minha escrita, é assim que os entendo. Penso que dobram por mim ainda vivo.
José Cardoso Pires

3 Comments:

Al Cardoso said...

Embora cada vez menos catolico embora por vezes praticante, que me desculpem, mas tambem nao posso concordar com os sinos electonicos a darem badaladas de meia em meia hora durante a noite. Ainda se fosse durante o dia com os diabos, mas durante a noite nao consigo concordar e, hoje ate existem tecnologias simples e ate baratas, para obviar a situacao.
Na minha vila ate a pouco era so o da igreja da Misericordia, mas os paroquianos de "S. Miguel" acharam que nao podiam ficar atraz e, toca a instalar tambem um relogio na "matriz", e o mais engracado e que nem estam sincronizados; "agora tocas tu agora toco eu".
Menos mal que nao tenho casa na vila e na aldeia onde a tenho ela (a casa) ate fica um pouquito longe da igreja, gracas a D*us!

Um abraco de amizade dalgodrense.

Anónimo said...

É de facto uma ditadura dos beatos e uma falta de respeito pelo descanso dos outros. Quer um conselho? Dê um tiro nessa coisa e outro no padre!

Anónimo said...

Nunca um comentário foi tão acertado!